quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Territórios ocupados

Colocar o recém-lançado Territórios da Cidadania no mesmo saco do Bolsa Família é uma injustiça com o programa-símbolo do primeiro mandato de Lula.
O "novo" mutirão contra a pobreza rural não passa de um catálogo de 135 ações sociais já existentes e de verbas já estimadas no Orçamento para atender os 958 municípios mais carentes do país.
(Houvesse dinheiro extra ou mesmo a realocação de investimentos, estaria configurado crime eleitoral, e o governo federal teria de adiar a iniciativa para 2009.)
O impacto do Territórios também é incerto. No cenário mais otimista, ele alcançará 8 milhões de habitantes, um quinto da população beneficiada pelo Bolsa Família.
Os R$ 11 bilhões prometidos para a largada neste ano parecem chute. A coordenação não soube informar quanto cada cidade levará, qual será a fatia correspondente a cada projeto (Luz para Todos, Farmácia Popular etc.), nem quanto foi destinado a esses municípios em 2007. Ou seja, em tese, o Territórios pode significar um corte de recursos.
Por que o espalhafato no anúncio do mutirão, então?
Não se trata só da conhecida queda de Lula por um microfone. As áreas rurais mais pobres são um foco de críticas. A reforma agrária avançou pouco. O acesso ao crédito no campo, um trunfo deste governo, não foi traduzido em dividendo político. Era preciso falar algo a esse eleitorado.
O Territórios é, portanto, pura propaganda. Mas justamente por isso pode vir a ter utilidades.
Outro candidato à marca-fantasia de Lula 2, o PAC também não passava de um catálogo de obras já previstas. A sigla marqueteira, porém, forçou o Planalto a gerir esse catálogo e divulgar balanços periódicos. Bem ou mal, o país vai aprendendo a debater infra-estrutura.
Se bem feito, o cadastro de ações sociais pode chamar a atenção (não só do governo) para regiões miseráveis e ajudar a aplicar melhor o dinheiro de que elas necessitam.

coluna de 27.fev.2008

mfilho@folhasp.com.br

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Forno de Minas

O bom relacionamento entre Lula e José Serra diz respeito ao presente administrativo, não ao futuro eleitoral. O presidente não medirá esforços contra um concorrente (hoje, favorito) que representaria uma ruptura em 2010.
Enquanto os nomes do PT não decolam nas pesquisas, uma estratégia seria encher a bola de Aécio Neves, tucano que assusta menos o lulismo.
Há as sabidas e insistentes tentativas de convencer o governador mineiro a trocar o PSDB pelo PMDB e de fazer dele o candidato de perfil "agregador" da base aliada.
Mas há outra opção, pouco comentada até aqui: turbinar o neto de Tancredo dentro de seu partido.
Nas últimas semanas, conscientemente ou não, Aécio escreveu o roteiro para o presidente ajudá-lo.
Ofereceu um acordo ao prefeito petista Fernando Pimentel _algo digno de nota, não só devido às desavenças nacionais entre os partidos, mas porque os tucanos estavam no páreo em Belo Horizonte.
Sugeriu um amigo e ex-assessor de Ciro Gomes (e do PSB) para encabeçar essa coalizão na capital.
Deu corda para que Geraldo Alckmin saísse à prefeitura paulistana, em desafio ao pacto PSDB-DEM que Serra havia costurado.
Por fim, contribuiu para a vitória de José Aníbal à liderança da bancada tucana, rompendo anos de domínio do alto clero serrista na Câmara.
E que ajuda Lula poderia dar?
Emparedar as alas do PT que ainda sonham em bater chapa em BH _e impedir que um ministro mineiro, como Luiz Dulci, ceda ao apelo.
Abençoar o namoro entre Ciro e Aécio, prometendo "imparcialidade" no primeiro turno em 2010.
Ceder espaços a tucanos não-serristas no Congresso. Na natimorta CPI da Tapioca, por exemplo.
E, por fim, empenhar-se para evitar a reeleição de Gilberto Kassab.
Estrangulado, Serra tombaria na prévia tucana. Aécio, com "mais potencial para crescer", seria candidato sem precisar virar a casaca. E Lula teria uma sucessão sem oposição.

coluna de 23.fev.2008

mfilho@folhasp.com.br

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Pane elétrica

O estica-e-puxa em torno das nomeações para o setor elétrico não deve ser visto apenas como um evento do fisiologismo.
O Planalto já deixou claro que o catálogo apelidado de PAC é a prioridade do segundo mandato. Quase só tratou dele no discurso de abertura do ano legislativo _reforma política, tributária e outros "grandes temas" de suposto interesse do Executivo nem citados foram.
Na avaliação oficial, as obras do PAC ajudarão a agitar o mercado interno, a manter "otimista" a iniciativa privada e a imunizar a economia contra a incerteza global. De quebra, haverá o empurrãozinho eleitoral em outubro, uma vez que toda inauguração levará o carimbo do programa federal.
Esse roteiro, contudo, sofreu um revés em dezembro. Com a extinção da CPMF, o governo foi forçado a refazer os cálculos. Para preservar o PAC na íntegra, optou por congelar os demais investimentos.
A margem de manobra dos ministérios despencou da noite para o dia por conta disso. Verbas de cada pasta foram contingenciadas _ou, se relativas a projetos do PAC, "confiscadas" pelo QG que gerencia o programa.
O poder de decidir os gastos _e, portanto, de fazer política por meio da administração pública_ foi todinho concentrado na Casa Civil.
Finalmente compreendeu-se o que a ministra Dilma Rousseff queria dizer com o conceito de "transversalidade": só ela manda pagar, Guido Mantega paga, e os colegas de governo bebem o cafezinho.
De mãos atadas, os ministros hoje enfrentam a fúria de seus próprios partidos. Márcio Fortes (Cidades) e Reinhold Stephanes (Agricultura), por exemplo, são execrados em público pelas bancadas do PP e do PMDB, respectivamente.
Os mais adaptáveis e safos enxergaram uma saída. Aferram-se como podem aos cargos que ainda possuem alguma autonomia orçamentária. Petrobras, Eletrobrás, Furnas, Eletronorte, Eletrosul.

coluna de 20.fev.2008

mfilho@folhasp.com.br

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Proteção total

A Temasek foi recebida em 2001 pela Indonésia como salvadora da pátria. Capitalizou empresas insolventes, tocou projetos de infra-estrutura na área de telecomunicações e reempregou milhares de pessoas.
No final de 2007, com o país enfim refeito da crise asiática, recebeu o aviso do governo: embora cumprisse rigorosamente a lei, deveria entregar os negócios, sob a alegação de que afrontava a soberania nacional.
O revés do fundo de investimentos de Cingapura, ainda que pareça remoto, merece ser lembrado neste momento em que o dinheiro de emergentes lastreia bancos do Primeiro Mundo e impede (retarda?) a recessão nos EUA.
O alerta indonésio: o aporte estrangeiro pode se tornar indesejável quando as coisas se estabilizam na economia socorrida.
Hoje não há país que não se assuste com a perspectiva de um desaquecimento global. Corredores comerciais da Ásia, como a Tailândia, se insurgem contra os produtos chineses. O embargo à carne brasileira pela Europa não é coincidência. Nem a corrida à África, último mercado sem barreiras.
Mas é nos EUA que a onda protecionista começa a quebrar forte _e bem antes de o país vislumbrar o reequilíbrio. Graças, em parte, à feroz campanha democrata à Presidência.
Ambos os pré-candidatos prometeram recuperar a capacidade de o mercado nacional atender às demandas internas de consumo.
Hillary se disse desconfiada dos fundos soberanos, defendeu mecanismos para monitorar esses investimentos e anunciou que reexaminará o Nafta, o acordo de livre comércio que o marido assinou.
Obama avisou que vai "mandar um recado" à China, declarou que o Nafta só funciona para mexicanos e canadenses e prometeu repatriar, por meio de subsídios federais, os empregos que o país exportou.
Há outros fatores em jogo nessa eleição, claro. Mas é curioso que em Brasília, uma zona franca sob vários aspectos, a disputa Hillary x Obama desperte tamanho entusiasmo.

coluna de 16.fev.2008

mfilho@folhasp.com.br

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Saque por baixo

Aos poucos, os "spinners" do Planalto consolidaram três lendas urbanas sobre o uso abusivo e irregular de cartões corporativos pelo governo federal.
A primeira é a de que o presidente merece aplausos por abrir as contas pela internet. Um baita exagero, posto que 90% dos gastos do ano passado não foram divulgados pela Controladoria Geral da União. De 0 a 10, portanto, Lula merece nota 1 em transparência _pouco, a rigor, para cantar vantagem sobre o governo Serra, que, como o de outros Estados, zerou nesse quesito.
A segunda é a de que não há nada a fazer quanto à fatia mais polpuda de despesas: as retiradas em contas do tipo B e na boca do caixa com os cartões (R$ 158 milhões, em 2007).
Surpreendido pelas denúncias nas compras a crédito com os cartões, o governo anunciou a extinção das contas B (só em junho) e fixou novo teto para saques. Mas nada falou sobre os gastos passados nem sobre intensificar a fiscalização.
As prestações de conta da movimentação em dinheiro vivo estão (ou deveriam estar) mofando nos ministérios. Cabe ao Planalto requisitá-las para apurar se há notas frias e indícios de salário indireto.
(O mesmo vale para o TCU, que por enquanto só executou varredura meia-boca nessas despesas.)
Quanto ao futuro, o Planalto deveria se comprometer a tornar públicos também os detalhes do uso da boca do caixa, divulgando no Portal da Transparência a razão dos saques e os dados (nome e CNPJ) dos fornecedores contemplados.
A terceira lenda urbana é a de que o caso é irrelevante _ou tem a relevância de uma tapioca. O escândalo dos cartões lida com miudezas também, mas pode ter um efeito graúdo sobre a administração dos gastos públicos. Se há um viés político, paciência. O governo não pode usá-lo como desculpa para a inação. Deixar sem vigilância os saques em dinheiro significa oferecer um salvo-conduto para quem fraudou _e para quem vai fraudar.

coluna de 13.fev.2008

mfilho@folhasp.com.br

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Sinal verde?

Para uma economia em expansão, o Brasil não faz feio no Environmental Performance Index, o índice-piloto que procura calcular o desempenho ambiental de todos os países do planeta.
Na edição deste ano do ranking elaborado pelas universidades de Yale e Columbia, ele emplaca a 35ª posição, com nota 82,7 (0 a 100). Aparece à frente de nações com "vocação" parecida, como México e Austrália (empatados em 46º, com 79,8), África do Sul (97º; 69), China (105º; 65,1) e Índia (120º; 60,3).
O estudo computa 25 indicadores, divididos em saúde ambiental (poluição do ar, qualidade da água, saneamento) e vitalidade de ecossistemas (emissão de gases-estufa, conservação de matas, controle de pesticidas). Os 25 dizem respeito a políticas públicas, ou seja, àquilo pelo qual os governos podem _ou deveriam_ ser responsabilizados.
Trata-se de um "trabalho em progresso", devido a limitações metodológicas: ainda não há um padrão métrico mundial para monitorar o ambiente. A pesquisa tenta driblar essa situação por meio de modelagens estatísticas e do descarte de quem não tem dados confiáveis.
O EPI, mesmo assim, parece antenado. Os EUA tombaram, da 28ª para a 39ª colocação (nota 81). Faz sentido, dado o desdém do governo Bush pela questão. A Suíça (95,5) tirou a liderança da Nova Zelândia, que ficou na 7ª (88,9). A Argentina caiu da 30ª para a 38ª (81,8).
O Brasil perdeu um lugar desde 2006, mas sua nota subiu 5,7 pontos. Surpreendente, se consideradas as pressões por inclusão e demandas de consumo atendidas após décadas. Mérito de ativistas, servidores, cientistas e jornalistas que divulgaram por aqui a agenda verde.
Sem transigir com erros de gestão nem ignorar urgências ambientais, o EPI reconhece esses avanços. De certa maneira, confirma a necessidade de uma discussão menos superficial sobre a (não) ocupação da Amazônia. O apocalipse, sugere o ranking, está em outras paragens.

coluna de 09.fev.2008

mfilho@folhasp.com.br

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Crédito ou débito?

Matilde Ribeiro fez sua parte, claro. Flagrada no topo do ranking dos gastos (os declarados, bem entendido), enrolou-se com as justificativas. Recusou-se a relatar o que comprou no free shop, a provar que ressarciu a União e a esclarecer por que usou o cartão corporativo em plenas férias.
A entressafra noticiosa ajudou. Talvez tudo tivesse sido diferente se fosse março ou abril, quando políticos e jornalistas estaríamos atolados no debate sobre cortes no Orçamento _ou chatice parecida.
Não se pode, também, descartar o ingrediente étnico. Não criaram a secretaria e nomearam uma negra justamente para forçar a sociedade a enfrentar seus preconceitos? Natural que um escândalo como esse suscitasse cobranças inflamadas.
Nada disso, porém, basta para explicar por que a ministra da Igualdade Racial acabou rifada tão rápido _em menos de três semanas.
Este governo não costuma se abater com os pecados dos seus, dar bola para a oposição/mídia ou temer o confronto com a opinião pública.
E, no entanto, antes mesmo que a imprensa destrinchasse as contas, o Planalto vazou, pela ordem, que: a auditoria das despesas já tinha sido pedida, as conclusões iniciais eram comprometedoras, os colegas de gabinete estavam indignados, novas regras seriam adotadas para os cartões e a cabeça de Matilde cairia.
Falou-se, logo, que Lula teria aprendido com o mensalão. Mas as revelações, durante o feriado, dando conta de que assessores do próprio presidente (e de sua família) também fizeram a festa com os cartões indicam outra razão para tanta diligência: evitar que se cavoucasse mais fundo nas compras que, por lei, requereriam licitação.
O silêncio atípico do PT diante da fritura de Matilde; o chilique de Franklin Martins ao saber que despesas da Presidência haviam sido tornadas públicas; o embaraço da Controladoria ao (não) comentar os gastos milionários da Presidência. A novela escapou do roteiro.

coluna de 06.fev.2008

mfilho@folhasp.com.br

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Temporão e o vento

"Enorme especulação", "exagero midiático", "histeria coletiva" e expressões similares pipocaram nas declarações da cúpula da Saúde sobre o surto de febre amarela enquanto o governo corria para imunizar os ministros e fumegar a Granja do Torto _e não para cuidar das internações, distribuir a vacina e fazer os esclarecimentos necessários à população.
Os casos de dengue também explodiram, de 345 mil para 560 mil em um ano. O ministério de novo sugeriu culpa do brasileiro: pobre, desinformado e pouco cidadão.
Até agora não houve explicação convincente para a arrancada da rubéola, de 1,6 mil a 6,9 mil casos entre 2006 e 2007, que arruinou os avanços do primeiro mandato.
Os engasgos do SUS? O doente que sofre no leito _e para conseguir deitar num? Tampouco encabeçam as atenções dessa administração.
A prioridade até aqui foi lançar debates sobre aborto, álcool, camisinha etc. Temas pertinentes, mas que, por sua natureza, dependem justamente do "exagero midiático" considerado inconveniente no "case" febre amarela. A discussão de fundo sobre a responsabilidade pelo consumo de drogas saiu de cartaz com a "Tropa de Elite", reparou?
Em vez de questionar a "plataforma" de Edison Lobão, uma ala do governo há dias reclama da nomeação do senador maranhense por se tratar de um político de carreira, sem erudição sobre os assuntos do Ministério de Minas e Energia. (Um discurso, aliás, que indiretamente endossa críticas a Lula.)
Mas e José Gomes Temporão? O ministro mais "técnico" de todos, o médico sério com currículo de realizações, disse nesta semana que seu maior feito em um ano no cargo foi ter... "repolitizado" a saúde.
Para Temporão, "a relação entre saúde e mídia é um campo apaixonante". As oportunidades de comunicação devem ser aproveitadas, claro. Mas o país ganharia se ele abrisse o coração também a urgências que não dão manchete.

coluna de 02.fev.2008

mfilho@folhasp.com.br