segunda-feira, 11 de março de 2013

BSB-CGH

As lembranças são o combustível de que os homens precisam para viver e não importa se elas têm muito ou pouco significado, escreveu Haruki Murakami no simpático "Após o Anoitecer".
O japonês faz uma curiosa analogia com o fogo. A página de jornal, o ensaio de filosofia, o pôster de revista masculina, o maço de dinheiro -tudo não passa de papel na hora de queimar. A chama não discerne. Consome tudo. Não fica exclamando "Nossa! Isto é Kant!" ou "É a edição de hoje da *Folha de S.Paulo*!" ou "Que belo par de peitos!". Para o fogo, é tudo papel.
Com as lembranças, seria a mesma coisa. Lembranças importantes, mais ou menos importantes ou até as bem miúdas: tudo, indiscriminadamente, é material de combustão. Na medida em que podemos utilizar, de acordo com nossas necessidades, as lembranças que temos, sejam elas importantes ou não, conseguimos tocar adiante.
Lembrei dessas palavras ao tomar a decisão de ir embora de Brasília, e, com isso, ter de me despedir deste espaço admirável _que, três décadas atrás, me capturou adolescente para o jornalismo.
Memórias de toda espécie se empilham na despedida. Colegas, leitores, políticos, pilantras, tanta gente inteligente que produz pouca inteligência, luas lindas, o horizonte que deixa ver o sol subir e descer, os melhores garçons e os piores motoristas do país, a alternância verde-marrom do cerrado, a reverência exagerada a qualquer autoridade... E notícias, notícias, notícias _de relevância cada vez mais difícil de precisar, dados o ritmo alucinante dos "fatos" e a demanda compulsiva da civilização do tempo real.
A alegoria de Murakami serve de consolo. Ficam a impressão de que vida e profissão queimam tudo e todos e a esperança de que, do terreno calcinado de lembranças e notícias, tenha brotado algo de substantivo e digno. Obrigado e tchau.

coluna de 11.mar.2013

melchiades.filho@grupofolha.com.br

segunda-feira, 4 de março de 2013

Dilma e o dragão

É curioso e significativo que Dilma Rousseff, logo ela, tenha manuscrito um bilhete mandando sua equipe afirmar o controle da inflação "como um valor em si".
Curioso porque a presidente sempre foi uma alma desenvolvimentista. Ministra de Lula, militou na ala anti-Palocci, que defendia relaxar a política monetária para ajudar a expandir a economia. Eleita, permitiu à inflação ascender além (do centro) da meta, enquanto alegava fatores sazonais e minimizava o aquecimento da demanda.
Significativo porque indica uma inflexão. Hoje, a inflação preocupa o Planalto mais do que o PIB.
O resultado da atividade econômica em 2012 (+0,9%) foi, de fato, anêmico. Mas há sinais de retomada. No último trimestre do ano, os investimentos em maquinário para produção e construção civil aumentaram. A indústria parece ter normalizado os estoques. Mantidos o ritmo da virada do ano e os juros baixos, o país crescerá além de 2% em 2013.
Além disso, estão programados para este ano leilões de rodovias, ferrovias, poços de petróleo, aeroportos e mesmo do trem-bala. Depois de levar traulitadas até de aliados, o governo melhorou prazos e taxas de retorno para quem apostar nessas grandes obras de infraestrutura.
O pacote logístico talvez não turbine o PIB de imediato. Mas contribuirá para aliviar o desânimo da iniciativa privada. Isso sem falar da nova lei de portos, que abre perspectiva atraente a investimentos.
Sobre a inflação, porém, não há boa notícia engatilhada. A taxa anualizada deve seguir rodando na casa de 6% nos próximos meses.
Não basta escrever bilhetes e reclamar dos "mercadores do pessimismo" para desarmar expectativas inflacionárias. Na ordem do dia estão calibrar as tarifas de importação, ajustar gastos correntes, manejar a supersafra de alimentos e aquietar o ministro da Fazenda, não necessariamente nesta ordem.

coluna de 04.mar.2013

melchiades.filho@grupofolha.com.br


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Os duelistas

Há propósito em Dilma romper o pacto de não-agressão com FHC e, no lançamento da campanha à reeleição, definir o PSDB como principal adversário. E em Aécio Neves, no mesmo dia, subir à tribuna do Senado para apontar erros da gestão petista e finalmente assumir sua candidatura.
O cenário confuso, com tantos atores se mexendo, empurra os antigos rivais à zona de conforto. Batem um no outro porque precisam um do outro _e talvez já nem façam mais tanto sentido um sem o outro.
Ao fustigar os tucanos, Dilma desfez o rumor de que Lula tentaria a sorte em 2014 e passou a liderar o noticiário da sucessão _do qual, curiosamente, estava quase excluída.
Não convinha ao Planalto que Marina Silva (Rede) e Eduardo Campos (PSB) recebessem toda a atenção. Até porque, para decolar, eles terão forçosamente de questionar o PT e o governo que um dia apoiaram.
Dilma mostra que está viva ao bater no PSDB. Delimita os campos e pressiona os demais partidos da base a escolher um lado _o dela.
Além disso, os tucanos têm sido presa fácil. A militância petista já roda no automático os ataques a FHC. Para atingir Campos ou Marina, seria preciso um software novo.
Que ninguém estranhe se a presidente tentar replicar tal polarização nos Estados, a fim de vitaminar a chance de seus preferidos a governador _sobretudo em São Paulo. A reforma ministerial, que ela começa a definir nesta semana, será um passo decisivo dessa estratégia.
A Aécio não resta senão aceitar o convite para dançar. Sua candidatura só será competitiva se atrair defecções no grupo governista. Por enquanto, ele não pode atacar nenhum partido que não o PT.
Daí o jogo duplo do mineiro na eleição de Renan Calheiros (PMDB) para o comando do Senado. Daí, também, seu esforço em manter aberta a porta para uma aliança de última hora com o PSB de Campos.

coluna de 25.fev.2013

melchiades.filho@blogspot.com

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Cadastro positivo

Interessado em adiantar o calendário eleitoral e fixar um slogan de apelo popular, o governo federal põe em risco a credibilidade da principal ferramenta de inclusão social que ele ajudou a implantar.
Criado sem alarde em 2001, o Cadastro Único hoje traz os dados de 70 milhões de pobres e miseráveis.
Permite não apenas localizar essas pessoas para o repasse de dinheiro _como o Bolsa Família. Mas também monitorar a frequência escolar das crianças, mapear carências e demandas de saúde e prospectar empregos ou outras oportunidades de inserção em cadeias produtivas.
A montagem do cadastro foi um sinal de vitalidade da gestão pública. Quebrou a lógica perversa das repartições. O Estado foi em busca do cidadão, e não o contrário.
Contribuindo para vigiar e depurar as informações, prefeituras e governos de Estado têm o direito de consultar a base digitalizada, assim como pesquisadores do assunto.
Mas, como todo arquivo vivo, que dirá num país de dimensão continental e tantas vulnerabilidades, o Cadastro Único não é perfeito. Exemplo disso é a recente "descoberta", pelo Ministério do Desenvolvimento Social, de 2,5 milhões de miseráveis até então ignorados pela lista.
O critério de pobreza extrema também é questionável. O teto da renda mensal per capita foi cravado em R$ 70 _se ganhar R$ 71, o sujeito não é mais miserável. Mais: tal valor permanece congelado desde 2009. Se ajustado pela inflação, estaria agora na casa de R$ 90.
Por isso, será licença estatística, senão mentira deslavada, anunciar que "acabou a miséria no país", como Dilma Rousseff ensaia fazer ainda neste ano. O governo conhece de perto as limitações do Cadastro Único. Sabe que a linha de indigência, além de tênue, está defasada.
Por isso, também, o Planalto deveria corrigir a métrica dos programas sociais antes de decretar o fim do ciclo de estímulos ao consumo.

coluna de 18.fev.2013

melchiades.filho@grupofolha.com.br

Marina e o 'Suco do Bem'

Deve ser lançada nesta semana a sigla que servirá de bonde à nova candidatura presidencial de Marina Silva. Terá nome heterodoxo ("Rede" ou algo assim) para reforçar o contraponto a "tudo que está aí" e a denúncia do "atraso organizativo da política brasileira".
Sempre haverá lugar para quem defender honestidade e zelo na vida pública. Marina melhorou o debate em 2010. Fará o mesmo no ano que vem. Merece estímulo.
Há, contudo, dois aspectos preocupantes no projeto "sonhático".
O primeiro é a viabilidade eleitoral. Desta vez, será mais difícil para o marinismo se diferenciar.
Na contramão de alguns de seus aliados, Dilma Rousseff até agora não descuidou da opinião pública. Sem prejuízo da conveniência marqueteira, a "faxina" de fato tirou dos cargos suspeitos de corrupção. Mensaleiros foram mantidos distantes do Planalto. O PMDB se fortaleceu "à revelia". A presidente nunca posou abraçada a Maluf.
Outro senão diz respeito ao caráter "antipolítico (no limite, apolítico) da "Rede", justo quando há um esforço de depuração _iniciativas de transparência pública, o envolvimento do Judiciário, a atuação da imprensa independente, a multiplicação de vozes na internet etc.
Falta, claro, autocrítica a muita gente em Brasília, alheia ao que dela pensa o país. Mas não falta autocrítica também aos "antipolíticos"? Renan Calheiros provavelmente conhece o Brasil mais de perto e a fundo do que a maioria das pessoas do abaixo-assinado contra a eleição dele à direção do Senado. No mais, nem todo político é bandido. Quem reuniu provas do mensalão foi um deputado do... PMDB!
Marina não é o "Suco do Bem" da política. Não detém a patente das virtudes. Deveria desautorizar o rótulo fácil, o oba-oba promocional e o discurso que, de certo modo, põe em xeque as instituições democráticas pelas quais tanto se lutou.

coluna de 11.fev.2013

melchiades.filho@grupofolha.com.br

sábado, 5 de janeiro de 2013

Um prefeito que desse jeito

Ainda existe quem estranhe quando Eduardo Paes afirma que prefere completar o segundo mandato na Prefeitura do Rio a buscar uma eleição algo garantida ao governo do Estado.
Afinal, reza o senso comum que os políticos devem aproveitar o embalo para galgar a escada de cargos eletivos. Tudo menos ficar sem mandato entre um degrau e outro.
Como, além disso, o PMDB não dispõe hoje de nome mais forte que o do prefeito para dar continuidade à administração de Sérgio Cabral, virar governador em 2014 seria o caminho natural para Paes.
Ocorre que as coisas estão mudando _e, pelo jeito, não só no Rio.
Uma nova safra de prefeitos toma posse amanhã inclinada a cumprir os quatro anos de mandato _se possível, engatando outros quatro. Parece ter percebido que pular de uma cadeira para outra não é necessariamente a melhor estratégia.
A asfixia orçamentária dos Estados ajudou a amadurecer esse diagnóstico. E está bem fresco o antiexemplo de José Serra, que se espatifou nas urnas depois de deixar dois mandatos incompletos _um deles no nascedouro_ em São Paulo.
Mas esse viés defensivo não explica, sozinho, a guinada. Os prefeitos eleitos também notaram que têm pela frente uma grande oportunidade de fazer a diferença _se honrarem o compromisso de quatro anos assumido com o eleitorado.
Nada melhor para o currículo de Paes do que ficar marcado como o prefeito que comandou a reviravolta carioca e conduziu a cidade à grande festa da Olimpíada de 2016.
Guardadas as diferenças, é o mesmo desafio de Fernando Haddad (PT), Gustavo Fruet (PDT) e ACM Neto (DEM). Reduzir o deficit social e o caos de São Paulo, recolocar Curitiba na vanguarda urbanística, tornar Salvador um município à altura de sua riqueza cultural e histórica, um feito assim pavimentaria o futuro político de qualquer um.

coluna de 31.dez.2012

melchiades.filho@grupofolha.com.br