sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Liga da Justiça

Há várias razões para a sanha legislativa do Supremo Tribunal Federal, além do gosto dos ministros pelo holofote. Uma delas é a desorganização jurídica do país.
Entre leis, decretos, instruções, portarias, comunicados e resoluções, existem mais de 180 mil normas legais federais, de acordo com um levantamento da Casa Civil. Textos obsoletos, que colidem entre si e/ou inconstitucionais convivem nesse cipoal, disseminando incertezas e enlouquecendo quem precisa _e quem vive_ da Justiça.
Não faz sentido pôr toda a culpa nos deputados constituintes, que produziram uma Carta longa e detalhista demais e, ao mesmo tempo, transferiram os impasses para a legislação complementar. Acima de tudo, eles tinham de lidar com a urgência da transição democrática.
Parcela maior de responsabilidade têm as gerações seguintes de parlamentares e os partidos políticos. Depois de exatos 20 anos, a Constituição continua incompleta, à espera de regulamentação.
De certa forma, é justamente esse o espaço que o Judiciário-em-nova-fase procura (ou é requisitado a) preencher. Algemas, direito de greve, nepotismo... e por aí vai.
Em 2007, depois de uma década de total descaso pelo assunto na Casa, um grupo de deputados percebeu a necessidade de consolidar e harmonizar as leis em vigor.
Divididos em 21 frentes de trabalho temáticas (meio ambiente, mineração, Previdência etc.), eles começam agora a apresentar os relatórios. Já está pronto, por exemplo, o projeto de lei que enxuga a CLT _segundo os autores, sem suprimir direitos trabalhistas ou deveres.
Se deseja reagir à investida do Judiciário e reafirmar sua prerrogativa de legislar, a Câmara deveria acolher esse trabalho de ordenamento jurídico e se empenhar para votá-lo com rapidez _em vez de priorizar a proposta de aumento salarial do STF, que agrada os ministros, mas afronta o contribuinte.

coluna de 29.ago.2008

mfilho@folhasp.com.br

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Te vi na TV

A mais recente bateria de pesquisas do Datafolha comprovou que a propaganda nas TVs e rádios continua uma ferramenta eleitoral poderosa, se não decisiva.
(Por semanas, desdenhou-se da eficácia dos programas, em uma cruzada alimentada pelos próprios partidos políticos, interessados em baixar os honorários dos marqueteiros e equipes de comunicação.)
Em São Paulo, caiu a distância do prefeito Gilberto Kassab (DEM) para o tucano Geraldo Alckmin, de 21 para 10 pontos percentuais.
No Rio, Eduardo Paes (PMDB) subiu de 9% para 17% e cavou um triplo empate com Marcelo Crivella (PRB) e Jandira Feghali (PC do B).
Para desespero dos adversários da aliança entre PSDB e PT, o candidato "flex" Marcio Lacerda (PSB) arrancou em Belo Horizonte. Com um salto de 15 pontos, foi a 21% e superou a comunista Jô Moraes.
No topo das intenções de voto, nada mudou em Salvador. Mas Walter Pinheiro (PT) deu sinal de vida e passou de 7% para 13%.
Em Recife, o petista João da Costa (37%) não só desbancou Mendonça Filho (DEM) como já esboça possível vitória no primeiro turno.
A candidata à reeleição Luizianne Lins (PT) desgarrou de Moroni Torgan (DEM) e agora aparece na frente em Fortaleza, no limite da margem de erro _35% a 29%.
O Datafolha flagrou só três dias de campanha nas TVs e rádios. Mas, segundo o instituto, eles bastaram para "contaminar" os cenários.
Afinal, só há uma coisa em comum entre Kassab, Paes, Lacerda, Pinheiro, Costa e Luizianne: mais tempo de propaganda que os rivais diretos.
Ao se meter na vida das pessoas e lembrá-las da votação, os programas, ainda que péssimos, têm um efeito mobilizador. Depois do anticlímax da Olimpíada e do fim do mistério da novela das oito, do que falar na fila do ônibus, no churrasco na laje, no café da repartição?
Por isso, também, a queda abrupta de indecisos nas capitais: 43%, contra 58% no "round" anterior.

coluna de 26.ago.2008

mfilho@folhasp.com.br

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Receita do bolo

Tramita quieta e rapidamente no Congresso um acordo entre os fiscos do Brasil e dos EUA que prevê a troca de informações e acesso a dados sigilosos.
Aprovado o texto, auditores brasileiros poderão vasculhar as movimentações financeiras e declarações de renda de pessoas físicas e jurídicas nos EUA _e vice-versa.
A Receita saliva com a perspectiva de descobrir os brasileiros com imóveis e dinheiro não-declarados nos EUA e disparar processos por sonegação e evasão de divisas. A Flórida não seria mais a mesma.
Curiosamente, porém, quem mais opera pela aprovação do intercâmbio não é o governo, mas a nata da iniciativa privada nacional.
Embraer, Vale, Gerdau, Coteminas, Votorantim & Co. não estão empenhados em caçar sonegadores. Procuram fazer desse tratado bilateral o trampolim para outro: convencer os EUA a aceitarem o fim da dupla tributação, o que reduziria o recolhimento dos lucros que essas empresas repatriam.
O silencioso rolo compressor sobre a Câmara, contudo, esmagou duas contraposições importantes.
Primeiro, nada garante o sucesso da estratégia "fatiada" _inédita. O governo americano não firmou compromisso sobre a bitributação.
Segundo, não há no texto no Congresso salvaguarda à privacidade do contribuinte. O envio de dados teria de ocorrer mesmo que a conduta do investigado não fosse crime em seu país. Em tese, os EUA poderiam exigir os dados de familiares de imigrantes ilegais, por exemplo.
A Receita tenta tranqüilizar. Promete no dia-a-dia filtrar os pedidos, adequando-os à legislação nacional, e impedir a utilização indevida das informações repassadas.
O acordo, de todo modo, criaria um atalho não-judicial para a quebra do sigilo bancário. Cabe perguntar se, para aliviar a grande indústria, o brasileiro se dispõe a confiar esse direito constitucional a fiscais anônimos desobrigados de tornar públicas suas decisões.

coluna de 22.ago.2008

mfilho folhasp.com.br

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Peixe grande

O PT catarinense, que hoje controla a Secretaria da Pesca, tem pela frente um difícil ciclo eleitoral e por isso corre para garantir abrigo. E, já que a Petrobras não bastou para acomodar o condomínio de siglas que apóia Lula, convém fundar outra estatal para gerir as reservas do pré-sal.
Ainda que isso tudo seja verdade, não cabe tratar da emancipação do Ministério da Pesca e da invenção da "PetroSal" apenas como manobras do governo federal para ampliar o cabide de empregos. Há algo mais importante em jogo.
O novo status concentrará na pasta de Altemir Gregolin todo o ordenamento do setor, hoje espalhado por várias repartições. Uma única canetada poderá liberar a criação extensiva de pescado nos lagos de hidrelétricas ou licitar áreas oceânicas. É a cartilha da Casa Civil: ruim para o Ibama, bom para o país.
Quanto à Petrobras, os PACmen do Planalto sabem o quanto devem aos impostos e dividendos repassados pela empresa. Mas sabem, também, que uma "PetroSal" permitiria à União antecipar receitas e morder a bolada que atualmente fica com municípios e Estados ("royalties") e com os acionistas.
Guardadas as devidas proporções, nos dois casos Lula busca lastro orçamentário e liberdade executiva. Dinheiro e poder, na veia.
As críticas ao aparelhamento do Estado são pertinentes, sobretudo neste momento de despreocupação fiscal. Mas elas têm impacto reduzido. Urnas e pesquisas de opinião seguidamente revelam que o eleitor não só aceita como deseja os dedos do Estado na economia.
A oposição erra, portanto, quando martela somente a tecla do inchaço da máquina pública. Marcos regulatórios, observâncias ambientais, priorização de investimentos _no peixe e no óleo, o Planalto precisa ser desafiado a responder a essas urgências também. O dinheiro de Tupi pode erguer a educação pública? Pode. Mas pode acabar irrigando apenas as Unilixos da vida.

coluna de 19.ago.2008

mfilho@folhasp.com.br

domingo, 10 de agosto de 2008

Primeiros socorros

Uma no cravo: o ranqueamento de escolas é útil, mesmo que contenha pequenos erros técnicos ou contrabandos politiqueiros. Ele serve de munição para que alunos, pais e professores exijam mais qualidade. Estimula as instituições de ensino a agirem para não caírem na "lista suja".
Outra na ferradura: está mais do que na hora de o governo responder aos maus resultados coletados pelos exames nacionais de avaliação.
Não basta expor os dados e prometer fiscalização. Fernando Haddad diz que antigamente "era uma festa" para os educadores picaretas. Se nada mudar, o próximo ministro poderá usar a mesma frase.
Tome-se a revelação, nesta semana, de que um em cada quatro médicos do país se forma em cursos "sem condições de funcionar".
Esses formandos "não sabem nem tratar gripe", alerta a Sociedade Brasileira de Clínica Médica.
Imagine os riscos para a saúde pública _mais ainda porque a população considera os médicos os profissionais mais confiáveis (71%, em pesquisa do Market Analysis).
Muita gente de bem defende que o governo contra-ataque e imponha um teste de qualificação ao término do curso de graduação, similar ao exame de ordem da OAB.
(Em caráter experimental, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo já criou uma prova para avaliar quem completou os estudos no Estado, mas com adesão voluntária. A reprovação supera 50%...)
Não parece correto, porém, permitir que seja alijado do mercado o formando que pagou as mensalidades de um curso autorizado pelo MEC. Ou dar a terceiros o poder de definir quem pode trabalhar. Programas de inclusão como o ProUni perderiam força. Por que o sujeito investiria seu tempo na faculdade?
Um "exame de ordem" para médicos seria bom, mas como um estímulo positivo. Por exemplo, fazer dele um diferencial (ou requisito) para quem se candidata a cargos em hospitais e universidades públicos.

coluna de 09.ago.2008

mfilho@folhasp.com.br

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Tragédia da vida privada

O Estado brasileiro adverte: só faça entre quatro paredes o que puder repetir em público, só diga ao telefone o que puder falar ao megafone, só escreva no e-mail aquilo que todo mundo puder ler.
Reportagem da Folha comprovou o que os ministros Tarso Genro e José Múcio haviam comentado com sarcasmo: juízes de primeira instância e policiais federais se uniram para fuçar a privacidade de quem bem entenderem.
O disparate começou quando foi dado aos delegados da Operação Satiagraha sinal verde para estenderem o grampo a quem porventura tivesse falado com os suspeitos.
Havia autorização, por exemplo, para varrer as ligações de Dilma Rousseff e de Gilberto Carvalho, pois os dois assessores mais próximos de Lula foram contatados pela infantaria de Daniel Dantas. (Se eles deram ou não uma mãozinha para as Farc? Os sombras sabem.)
A senha que as companhias telefônicas tiveram de entregar à PF permitia mais ainda: acesso ao histórico de qualquer pessoa. Ronaldinho, Juliana Paes, Jorge Gerdau, tanto faz. Bastava digitar o nome.
Sem ter de prestar contas a ninguém, a arapongagem pôde deixar ligado o aparelho que coletava os dados mesmo depois de encerrado o prazo estabelecido pela Justiça.
Ninguém se lembrou de resguardar o cidadão comum e inocente _aquele cujos interesses o delegado Protógenes Queiroz diz proteger. Inquirido, um dos juízes responsáveis afirmou que "garantismos" não fazem mais sentido.
Como se portar diante de tanta bisbilhotice? Extirpando as paixões, sublimando os desejos, escondendo direitinho os pecados?
O custo dessa onda justiceira é a paranóia _e, eventualmente, a renúncia à individualidade.
Não deixa de ser curioso que os dois ministros mais influentes no momento sejam justamente Dilma Rousseff e Franklin Martins, que exerceram a dupla identidade nos tempos de guerrilha.

coluna de 06.ago.2008

mfilho@folhasp.com.br

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Aberto para reforma

Passatempo favorito de um governo sem agenda legislativa e de um grupo de parlamentares com espasmos de crise de consciência, a reforma política desta vez tem alguma chance de decolar.
Há no Congresso uma questão mal resolvida, capaz de puxar o pacote de mudanças: a decisão da Justiça Eleitoral de punir quem trocar de partido durante o mandato.
Embora acreditem que a "intromissão" eventualmente cairá no Supremo Tribunal Federal, pois já foi considerada inconstitucional pela Procuradoria Geral, muitos líderes concluíram que, para não continuar à mercê do Judiciário, precisam de algum modo deliberar sobre a fidelidade partidária.
Diferentemente do que se diz, a falta de uma janela que permita a mudança de sigla não incomoda apenas o "baixo clero", tropa de choque fisiológica que, antes de o TSE acabar com a farra, costumava negociar a filiação de acordo com a oferta do Executivo. Quem hoje puxa as articulações na Câmara é um representante do PC do B ligado à associação dos juízes federais.
A aflição dos congressistas só faz aumentar com a aproximação das eleições municipais. Sabem que os derrotados deverão perder espaço e influência em suas agremiações.
Quando resolveu, no mês passado, reintroduzir o tema da reforma política e prometer empenho para aprovar um projeto de lei, o Planalto não quis apenas contentar os partidos da base. Agiu porque enxerga os riscos para a coalizão lulista desse rearranjo pós-outubro.
Do ponto de vista da tramitação, não haverá impedimento para a "flexibilização" da fidelidade partidária como parte de um catado de mudanças. Este é um ano de campanha dentro das duas Casas. Quem cobiça a presidência ou um assento nas Mesas não oferecerá resistência a um contrabando que interessa à maioria. E quem hoje comanda a burocracia gostará de se despedir com um pacote que "atende os anseios da população".

coluna de 02.jun.2008

mfilho@folhasp.com.br