segunda-feira, 30 de abril de 2012

Dura lex

A CPI do Cachoeira oferece oportunidade não só de investigar a fundo as relações entre políticos, empresários e o crime organizado, mas também de aprovar melhores leis de combate à corrupção.
Já surgiu uma ideia interessante na comissão de juristas escalada pelo Senado para revisar o Código Penal: classificar como crime o enriquecimento do servidor incompatível com sua renda declarada.
Pela proposta, a polícia não precisaria mais provar em detalhes como se deu a roubança. Bastaria constatar que o político (ou o juiz, o delegado etc.) acumulou patrimônio ou passou a usufruir de bens acima de suas possibilidades.
A medida não secaria de vez os propinodutos. Mas, como precisou o ministro Gilson Dipp (STJ), daria ao Estado um instrumento para agir com rapidez. O sujeito pensaria duas vezes antes de se fixar em Paris, emborcar vinhos exclusivos, colecionar carros importados...
A comissão de juristas tem feito outras sugestões arrojadas, como a ampliação dos casos em que aborto e eutanásia seriam permitidos. Estão quase todas fadadas à derrota, dada a composição do Congresso.
Fossem tempos normais, também iniciativas contra a corrupção acabariam na fila-que-não-anda. Os pilantras sabem como ninguém emperrar o trabalho parlamentar.
A CPI do Cachoeira, porém, quebra esse quadro de estupor. O escândalo é grande demais para ser abafado -ainda que o PT, justo quem mais lucrou politicamente com as revelações até aqui, opere para restringir o escopo da investigação.
Dipp e seus colegas deveriam tirar proveito e surfar a onda da Ficha Limpa, influenciando na redação do texto propositivo da CPI. Vale incluir outros bons projetos em tramitação no Congresso, como o que prevê punição também para quem corrompe (e não apenas para o corrompido), e fechar um pacote bem antes do recesso de julho.

coluna de 30.abr.2012

melchiades.filho@grupofolha.com.br

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Polos magnéticos

O desejo de retomar protagonismo no jogo político explica o empenho de Lula na instalação da CPI do Cachoeira. Não se trata apenas de "fígado", "sede de vingança" ou "sangue nos olhos".
Foi por determinação de Lula que a direção do PT exortou a militância a cobrar investigações sobre os negócios do contraventor e sua ligação com líderes da oposição. Partiu do ex-presidente, também, a ordem para o partido fechar apoio à CPI.
Há a intenção declarada de empastelar o mensalão _denunciar os crimes da gangue de Cachoeira como o "maior esquema de corrupção da história", para diminuir o impacto do julgamento do principal escândalo da era Lula. Mas não é só isso.
O sucesso de Dilma Rousseff em boa medida se deveu ao esmaecimento da herança lulista _da "faxina" que extirpou ministros remanescentes à guinada da política monetária, da degola de líderes no Congresso às mexidas na Petrobras.
A CPI interrompe a desconstrução. Emancipa Lula do papel secundário de cabo eleitoral de candidatos a prefeito, devolvendo-o a Brasília.
É sintomático que o ex-presidente faça articulações pró-CPI no hospital em que se recupera do câncer e cuide para entregar a relatoria da comissão ao PT paulista. Para ele, é ótimo que a teia de Cachoeira seja multipartidária: mais legendas terão de entrar na fila do beija-mão.
Em princípio, a CPI não interessa a Dilma. Ela planejava resgatar a "gerentona" _esquecida no primeiro ano e fazer um 2012 de realizações. O caso Cachoeira, contudo, monopolizará o noticiário. Em vez de discutir a queda de juros ou os novos projetos para a ciência, a imprensa se ocupará de fraudes e propinas.
Mas Dilma tem dois alentos. O brasileiro, a despeito de tanta confusão, ou por causa disso, gosta da presidente. E talvez não seja ruim ela ter como contraponto, na política, logo o padrinho e confidente. De um lado é PT, do outro também.

coluna de 23.abr.2012

melchiades.filho@grupofolha.com.br

segunda-feira, 16 de abril de 2012

A vez do mensalão

Nada garante que a CPI do Cachoeira venha a empastelar o julgamento do mensalão, ainda que muita gente torça ou trabalhe para que isso aconteça.
É de fato curioso que tenham vazado logo agora grampos coletados anos atrás pela Polícia Federal sobre Demóstenes Torres e outros parlamentares da folha de pagamento do jogo do bicho em Goiás.
Assim como soa estranho que a inapetência investigativa do Congresso seja interrompida por uma CPI governista _tais comissões sempre foram instrumento da oposição.
É digna de nota, também, a voracidade com que a direção do PT convocou a militância a misturar os escândalos (presente e passado) a fim de desqualificar testemunhas e acusadores do esquema de compra de apoio político ao governo Lula.
O inquérito do mensalão, porém, é consistente o bastante para resistir a ataques especulativos. A segunda fase da apuração policial ligou os pontos que faltavam na denúncia original da Procuradoria-Geral. Foi comprovado o desvio de dinheiro público _e não apenas o uso de caixa dois na campanha eleitoral, como alega a narrativa lulopetista.
Cachoeira pode até ter encomendado o vídeo da propina nos Correios em 2005 _episódio que acuou Roberto Jefferson e o levou a relatar o modo de operação do PT à Folha. Mas não foi o bicheiro nem Demóstenes quem drenou R$ 91,9 milhões do Banco do Brasil, forjou empréstimos e contratos para lavar a grana, fez saques na boca do caixa para remunerar aliados e remessas para paraísos fiscais _ações mensaleiras autorizadas e em alguns casos ordenadas pela cúpula petista.
As posses nesta semana de Ayres Britto (STF) e Cármen Lúcia (TSE) representam um golpe para os que apostam na impunidade. As revelações da bem-vinda CPI podem até servir de estímulo para a Justiça agilizar as sentenças de um escândalo que se arrasta há sete anos.

coluna de 16.mar.2011


melchiades.filho@grupofolha.com.br

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Tony Ramos está morto

Nunca antes neste país houve novela tão lúgubre como "Avenida Brasil". A marca da maldade aparece toda noite, as cenas costuradas para afligir a audiência.
João Emanuel Carneiro já havia brincado com as fronteiras entre o "bem" e o "mal" no trabalho anterior. "A Favorita" demorou a esclarecer quem, afinal, era a vilã.
Mas ali o que surpreendeu, e virou marca-registrada do autor, foi o ritmo frenético. Cada capítulo abria e fechava um pedaço do enredo.
Desta vez, João Emanuel vai além na quebra de maniqueísmos. A ideia de pureza foi simplesmente suprimida logo na estreia da história, com a morte trágica do personagem de Tony Ramos.
O ator que durante décadas encarnou a honestidade na TV agonizou entre soluços de sangue, sob chuva torrencial, atropelado depois de constatar que a mulher era uma pérfida. O herói com caráter, vimos, não passava de um banana. Para piorar, no último suspiro ajudou a armar o novo golpe da algoz.
Adriana Esteves vive a vilã barra-pesada, antológica. Agride crianças, humilha o amante/comparsa, engana meio mundo enquanto planeja enganar a outra metade.
A novidade é que quase não há integridade nos demais personagens. Vide os galãs: o craque de futebol pulou a cerca no dia do noivado; o filho adotivo alterna pileques com rompantes machistas; o empresário boa praça faz rodízio de esposas.
A mocinha de doce só tem o rosto _Débora Falabella foi outra boa sacada de escalação. Para engatilhar a vingança, largou o namorado e se finge de amiga da cunhada da vilã.
Todos mentem e trapaceiam no subúrbio emergente e consumista que serve de cenário à trama. Vale o lema "os fins justificam os meios" (ou "rouba, mas faz", "rouba, mas pro partido", "todos roubam"...). "Avenida Brasil" nos convida, ou nos coage, a torcer por quem faz o mal. Testa nossa ruína moral. Dói.

coluna de 09.abr.2012


melchiades.filho@blogspot.com.br

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Duas caras

Não são raros os exemplos de contradição entre a imagem que o político busca projetar e suas práticas, cedo ou tarde reveladas.
O presidente eleito graças a promessas de moralização e austeridade na verdade se alimentava de um esquema predatório de desvio de dinheiro público. O senador que posava de líder e estrategista do maior partido do Congresso se ocupava de coletar recursos repassados a laranjas e pagar as despesas da amante. O governador que se vendia como gestor moderno contava pessoalmente a grana da propina.
O caso de Demóstenes Torres, porém, é peculiar. Não se trata propriamente de descompasso, mas de um divórcio que beira a patologia.
Em nove anos de mandato, o senador do DEM goiano apresentou-se ao público como a palmatória da República. Em toda entrevista e discurso, fazia questão de apontar os malfeitos do governo federal, quando não alertar para os riscos de "crise institucional". Estava sempre a postos para oferecer aspas indignadas, tão úteis à imprensa.
Agora, grampo após grampo, fica claro que, durante todo esse tempo, o paladino da Justiça não passava de despachante de luxo dos interesses de um contraventor.
A distância entre reputação e realidade é abismal, como se um Demóstenes fosse o negativo do outro. O fenômeno ficou evidente no único e desastroso pronunciamento do senador pós-escândalo, no qual afirmou ser apenas "amigo" de Carlinhos Cachoeira. Em sã consciência, ele deveria ter antevisto que seus inúmeros préstimos ao bicheiro tinham caído nas escutas da PF.
Existe uma máxima segundo a qual os políticos não morrem. Sempre dão jeito de contornar derrotas, denúncias e condenações. Collor, Renan e Arruda estão aí para mostrar.
Mas para Demóstenes não haverá esse "dia seguinte". Desmoralizadas suas duas caras, quem vai querer comprar uma terceira?

coluna de 02.mar.2012


melchiades.filho@grupofolha.com.br