sexta-feira, 25 de junho de 2010

Terror ou terroir?

O projeto de uma nova lei de florestas contém erros e é complacente com desmatadores. Mas já conseguiu um feito: abriu no Congresso uma discussão mais aguda e menos contaminada de estereótipos sobre o papel e a importância do agricultor no país.
Um dos motivos é o fato de o texto apontar com clareza as limitações da legislação atual, que já soma mais de 40 anos de remendos.
Defasado, o Código Florestal transformou-se num fardo para os pequenos e médios proprietários _quase 90% caíram na ilegalidade. Além disso, atrapalha os assentamentos da reforma agrária, imobiliza a fronteira agrícola e serve de estímulo à concentração de terras.
O outro motivo é que esse diagnóstico ganhou um porta-voz atípico: o deputado do PCdoB Aldo Rebelo (SP). Surpreendidos com golpes de esquerda, os ambientalistas desinterditaram o debate.
No Brasil, a imagem do agricultor é pouco defendida. A herança colonial, das grandes propriedades improdutivas e do trabalho escravo; a ação agressiva de inclusão dos sem-terra; o deslumbramento do agronegócio ("country"!); os crimes denunciados por ONGs verdes _tudo isso contribuiu para a satanização de quem produz no campo.
A bancada ruralista aqui é pintada como representante de "sinhozinhos do mal", à diferença do que ocorre nos países mais ricos.
Na França, por exemplo, a agricultura está associada à resistência cultural, à defesa das diversidades regionais. A ideia do "terroir", tão cara ao consumidor de vinhos, é sustentada pelo subsídio estatal.
E em quantos filmes de Hollywood o herói luta pela posse ou sucesso da fazenda, reforçando que, no EUA, o direito à propriedade é sagrado também no campo?
O projeto de Aldo tem no mínimo o mérito de equilibrar a propaganda por aqui. O Brasil tem que reforçar os compromissos ambientais, mas precisa começar a ouvir aqueles que de fato manejam a terra.

coluna de 25.jun.2010


melchiades.filho@grupofolha.com.br

Portal de notícias

O governo Lula se atrapalhou ao levar à internet relatórios internos de avaliação de políticas públicas e cometeu um erro grave ao tirá-los sumariamente do ar, preocupado com a repercussão.
A sequência de atropelos lança dúvidas sobre o novo Portal do Planejamento -ferramenta de gestão promissora, porque reúne em apenas um espaço as estatísticas, leis e notícias de 50 temas sociais, econômicos e de infraestrutura.
O ministério, primeiro, foi imprudente quando, na estreia, semana passada, permitiu a divulgação não só dos dados brutos mas também das reflexões críticas habitualmente feitas pelos técnicos da pasta.
Essa transparência total parece bacana, tão raro é o governo (e sobretudo este governo) admitir erros e escancarar o que de fato pensa. Seu efeito, porém, seria o inverso: um desestímulo à franqueza.
Totalmente expostos às patrulhas, inclusive do próprio governo, os servidores passariam a medir cada palavra. Dificilmente teriam coragem de escancarar a má gerência do PAC ou a corrupção em torno do Luz para Todos, por exemplo.
Então por que o Planejamento agiu mal ao suspender o site? Justamente porque o primeiro catatau publicado foi devastador.
O portal demoliu, entre outras coisas, o plano do biodiesel (economicamente inviável) e iniciativas federais no campo (endividamento da agricultura familiar, concentração de renda e fiasco dos assentamentos da reforma agrária).
São avaliações difíceis para Lula digerir. O presidente bate bumbo do seu desempenho nessas duas áreas. A ponto até de, arrogante, ter anunciado os nomes que cuidarão delas em um governo Dilma (Miguel Rossetto e Paulo Okamoto).
O Planalto, porém, devia ter sido menos sanguíneo. Deixasse as críticas no ar e ajustasse os procedimentos mais adiante. Ao mandar engavetar o portal, só fez confirmar a vocação à propaganda enganosa e a aversão a todo tipo de crítica.

coluna de 22.jun.2010


melchiades.filho@grupofolha.com.br

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Que droga

Pesquisa divulgada na semana passada ajuda a entender por que Dilma Rousseff passou a tratar do crack em quase toda entrevista e por que José Serra acusou duramente o governo da Bolívia de leniência com o narcotráfico.
O Ibope perguntou a 2.002 eleitores quais os principais problemas do Brasil. Segurança pública e drogas ficaram em 2º e 3º lugares _à frente de questões como miséria, corrupção, habitação e transporte.
Instados a declarar o que deve merecer "especial atenção" do próximo presidente, os entrevistados confirmaram o diagnóstico: puseram a segurança pública como a 2ª prioridade e as drogas como a 4ª.
Os dois assuntos atraem mais atenção do que na eleição passada. Em 2006, a segurança ocupava o 3º lugar no ranking; as drogas, o 5º.
Essa preocupação crescente com a violência arranha até a portentosa avaliação de Lula: é a área em que ele tirou a pior nota (2,1, de um máximo de 5). Dos entrevistados, 38% disseram-se totalmente insatisfeitos com a atuação federal na questão da segurança _contra 7% de totalmente insatisfeitos com a gestão da economia, por exemplo.
Ninguém sabe ao certo o que influencia o voto. Os marqueteiros, porém, acham importante descobrir e explorar o que aflige o eleitor. O Ibope, portanto, apenas tornou público o que as pesquisas do PT e do PSDB já haviam detectado.
Daí a decisão de Dilma de lançar um alerta sobre a disseminação do crack e fazer uma dobradinha indiscreta com o Planalto, que na sequência anunciou uma campanha nacional de combate à droga.
O súbito ataque de Serra à porosidade da fronteira boliviana foi o modo encontrado para evitar que a adversária tomasse conta dessa agenda. Não tinha como alvo a diplomacia lulista ou o Mercosul, como alguns interpretaram de saída.
O que falta esclarecer é a desatenção dos candidatos até aqui ao tema que mais desperta interesse e indignação no brasileiro: a saúde.

coluna de 18.jun.2010


melchiades.filho@grupofolha.com.br

O livro dos espíritos

O golpe de 1964 teve "espírito democrático". A censura à imprensa foi "condição para o progresso". As cassações políticas, uma "necessidade" ante a "intransigência" do único partido de oposição (MDB) que a ditadura permitia existir na década de 70.
É espantoso, mas o dinheiro público ainda financia o ensino desses disparates no país. Como revelou a Folha no domingo, estão no livro de história usado nos colégios militares, com quase 15 mil alunos.
Pior, o Exército faz questão que os estudantes paguem por esse material didático, quando poderiam receber, de graça, outros livros de história credenciados pelo MEC.
É grave, portanto, o descaso do governo. O Ministério da Defesa promete acionar "autoridades competentes". A Secretaria dos Direitos Humanos optou pelo silêncio. A Casa Civil idem. Enquanto isso, louva-se a ditadura em sala de aula.
Na Presidência, Lula se revelou vacilante quanto à questão militar. Deixará ao sucessor, por exemplo, o exame de violações de direitos humanos no período da repressão. Para uns, foi amadurecimento político. Para outros, acovardamento.
Uma coisa, porém, é manter intocados os arquivos da ditadura. Outra é permitir que eles continuem a fabricar mentiras _e para jovens.
Um efeito da hesitação de Lula e seus ministros é que ela transfere à candidata do PT a pressão por um "posicionamento" _e não só devido ao passado dela na luta armada.
Como ministra, Dilma Rousseff não destoou do morde-e-assopra de Lula. Mas nunca pareceu confortável com essa abordagem no que diz respeito aos "anos de chumbo".
Numa premiação na Confederação Nacional da Indústria, em 2008, Dilma foi uma das poucas pessoas que não aplaudiram Jarbas Passarinho. O ex-ministro em três mandatos do regime militar acabara de discursar, e a ministra, de braços imóveis, procurava com os olhos na plateia um cúmplice para a "desobediência civil".

coluna de 15.jun.2010


melchiades.filho@grupofolha.com.br

sexta-feira, 11 de junho de 2010

'Muleques' e 'panicats'

A TV trouxe a primeira novidade desta campanha presidencial. Os candidatos não são mais apenas alvo dos programas de humor. Tornaram-se também atores. Aceitam de bom grado participar dos quadros concebidos para ridicularizá-los.
De um lado, Dilma Rousseff desdenha da própria aparência e promete dançar o "rebolation" se eleita. Do outro, José Serra saltita e cantarola o hit "Ah, Muleque" e faz escada para críticas de detratores.
Deve ser mesmo difícil resistir à simpatia e ao talento de Sabrina Sato, a principal "isca" do "Pânico na TV" para desarmar os políticos. Ou dos demais humoristas e dançarinas (as "panicats") do programa _eles muito bons, elas muito boas.
Mas há cálculo por trás do constrangimento. Dilma e Serra viraram habitués dos esquetes porque lhes interessa desfazer ou no mínimo atenuar a fama de mal-humorados.
Em tese, uma dose de irreverência pode ser útil na política, sobretudo num momento com tantos eleitores indiferentes. Pode contribuir para tornar mais popular a agenda pública, por exemplo.
Além disso, talvez seja saudável o candidato rir um pouco de si. O escracho diminui o "salto alto" e serve de contraponto às aflições e paranoias da disputa eleitoral.
Mas existe algo estranho nessa nova fase do humor nacional, sem prejuízo de seu sucesso.
Primeiro porque, no fundo, ele não incomoda. Piadas sobre plásticas ou olheiras não chegam a embaraçar Dilma e Serra como fariam determinadas perguntas sobre Previdência, SUS, mudanças do currículo escolar, uso do dinheiro dos impostos e outras urgências das quais os dois têm evitado tratar.
Segundo porque há o risco de os candidatos, como calouros nos trotes universitários, ficarem reféns do esculacho. O risco de perder o bom senso para não perder a piada.
Se das urnas sair a primeira mulher presidente, fará sentido ela festejar a vitória requebrando?

coluna de 11.jun.2010


melchiades.filho@grupofolha.com.br

PTrificado

Em público, Lula tem reiterado que é hora de "despaulistizar" a política no Brasil. Mas é justamente a seção paulista do PT que saiu fortalecida da pré-campanha.
A crise do dossiê anti-Serra serviu para desidratar a última liderança capaz de desafiar o velho _e contestado_ status quo do partido.
Fernando Pimentel, melhor amigo de Dilma Rousseff e apontado, com justiça ou não, como o responsável pelos novos aloprados, teve ontem de desistir da candidatura ao governo de Minas Gerais.
Caso saísse vencedor no segundo maior colégio eleitoral do país, o ex-prefeito de Belo Horizonte seria um contrapeso a Antonio Palocci, José Dirceu, Marta Suplicy, Rui Falcão e outros petistas de São Paulo que se aproximaram de Dilma e hoje até lhe indicam o que vestir.
Nos demais Estados, não pintou outro nome. O PT não cresceu como o previsto na era Lula. No Nordeste, por exemplo, foi o aliado PSB que mais posições conquistou.
Em contrapartida, desde os tempos áureos do Campo Majoritário não se via o PT paulista tão unido.
As várias forças do partido no Estado voltaram a se agrupar em 2009, por uma questão de sobrevivência. Havia ainda a ressaca dos vários escândalos (mensalão, aloprados 1, quebra do sigilo do caseiro). E havia o desconforto com o projeto de eleger ao Planalto uma ministra desconhecida e inexperiente. Não fazia sentido desperdiçar energia com rivalidades locais.
Agora, ironicamente, os paulistas se abraçam por causa das boas chances de vitória à Presidência.
Não cuidam só de assegurar a atenção da candidata e a influência sobre os rumos da candidatura.
Empenham-se, também, em tomar o controle da máquina da campanha, sobretudo a publicidade e a comunicação, e fincar âncora nessas áreas num governo Dilma.
Dividir esse mercado futuro com Pimentel não cabia no roteiro.

coluna de 08.jun.2010


melchiades.filho@grupofolha.com.br